Programação
Observar o mundo
O chamado cinema de observação pretende flagrar situações sem interferir sobre elas. No Brasil, Maria Augusta Ramos é a principal cultora dessa forma de documentário. Em Seca, ela lança um olhar paciente e pouco intervencionista sobre a realidade filmada, no caso a relação dos moradores da região pernambucana do Pajeú com a água difícil e preciosa.
Maria Augusta Ramos
Nascida em Brasília, completou sua formação cinematográfica na Holanda, onde reside parte do tempo até hoje. É uma das mais assíduas praticantes do cinema de observação no Brasil, sempre buscando variantes no método. Entre seus filmes mais famosos estão O Processo, Justiça, Juízo, Morro dos Prazeres, Futuro Junho e Desi, este filmado em Amsterdã.
Filme: Seca (2015)
Um caminhão-pipa percorre cidades e lugarejos da região do Pajeú, em Pernambuco. O filme o acompanha, flagrando diferentes formas como a população enfrenta a falta de água numa das regiões mais afetadas pela estiagem. Um road movie e ao mesmo tempo uma crônica sertaneja.
A imagem questionada
A inquietação do documentarista João Moreira Salles levou-o, em seus dois últimos filmes, a colocar em questão imagens produzidas por ele próprio e por outros no passado. Assim trataremos de uma das vertentes mais incisivas do documentário, que é dobrar-se sobre si mesmo e as imagens alheias.
João Moreira Salles
Documentarista, jornalista e editor jornalístico, persegue constantemente a renovação da linguagem nos seus filmes. Transitou da reportagem em Notícias de uma Guerra Particular ao cinema direto em Nelson Freire e Entreatos, e daí ao ensaio semipessoal em Santiago e No Intenso Agora. Produziu oito filmes de Eduardo Coutinho.
Filme: No Intenso Agora (2017)
Por meio de uma incisiva indagação de imagens de arquivo, o documentário reexamina acontecimentos marcantes da década de 1960, como a revolta estudantil em Paris, a Primavera de Praga e a China da Revolução Cultural experienciada pela mãe do diretor na época.
A poética do Simples
Uma das características do documentário contemporâneo é o interesse pelo simples, por coisas, pessoas e situações que nada têm de extraordinário. O mineiro Cao Guimarães é um expoente dessa modalidade. O título do premiado A Alma do Osso, assim como a frugalidade de seu único personagem, espelha a opção pelo essencial.
Cao Guimarães
Videoartista, fotógrafo e artista visual, aponta a câmera de seus documentários para personagens e situações inusitadas, geralmente fora dos chamados grandes temas. Além do premiado A Alma do Osso, destacam-se na sua filmografia os títulos Acidente, Andarilho, Rua de Mão Dupla, Otto, Espera e O Homem das Multidões.
Filme: A Alma do Osso (2004)
Dominguinhos da Pedra é um ermitão que vive sozinho, há 41 anos, em uma caverna nos confins de Minas Gerais, rejeitando todas as facilidades da sociedade contemporânea. O filme observa os hábitos do senhor de 72 anos e por fim o retira do seu estado comum, o silêncio.
O tempo como matéria
O tempo é matéria essencial de qualquer tipo de cinema, mas no documentário esse ingrediente pode assumir uma concretude especial. É o caso de alguns filmes de Carlos Nader, em que o passar do tempo sobre os personagens constitui o próprio tema e impregna cada imagem ou fala.
Carlos Nader
Além de trabalhos em videoarte, realizou filmes com forte apelo ensaístico. Preocupado com a complexidade da cultura contemporânea brasileira, investigou personagens anônimos, personalidades e artistas. Dirigiu, entre outros, Beijoqueiro, O Fim da Viagem, Preto e Branco, Pan-Cinema Permanente, Homem Comum, Eduardo Coutinho: 7 de Outubro e A Paixão de JL.
Filme: Homem Comum (2015)
Balanço da longa convivência do diretor com seu personagem, o caminhoneiro Nilson de Paula. Em quase 20 anos, morte, doença, recomeço e muita estrada fizeram parte da história desse homem comum. Em paralelo, trechos do clássico A Palavra (Ordet), de Carl Dreyer, e ainda uma versão alternativa deste filme, rodada por Nader na Inglaterra.
O eu filmado e minha família
Desde que o documentário moderno liberou a subjetividade dos realizadores, um campo imenso se abriu para o cinema. Teremos aqui um expressivo representante do documentário pessoal e familiar. Petra Costa faz espelhar a si própria ao falar da perda da irmã em Elena.
Petra Costa
Fortemente marcada por um ponto de vista pessoal, sua obra é pequena mas de grande notoriedade internacional. Foi indicada ao Oscar de documentário por Democracia em Vertigem e multipremiada por Elena. Assinou, ainda, o curta Olhos de Ressaca e o longa Olmo e a Gaivota. Atualmente, coordena um documentário coletivo sobre a vivência da pandemia Covid-19.
Filme: Elena (2012)
Num misto de evocação e incorporação da irmã que morreu muito jovem, Petra Costa, auxiliada por sua mãe, viaja pelas memórias da família através de cartas, filmes domésticos, recortes de jornal e um diário. A dolorosa, mas poética evocação da irmã é um ato de amor plenamente cinematográfico.
Retratos de artistas
Walter Carvalho se destaca como um dos grandes realizadores de perfis de artistas, sejam eles músicos, escritores, atores ou artistas plásticos. Ele exercita diferentes formas de composição nesses retratos, evidenciando as muitas possibilidades do documentário biográfico, do tradicional ao experimental.
Walter Carvalho
Um dos mais conceituados diretores de fotografia do mundo, aventurou-se na direção de filmes de ficção (Cazuza, Budapeste) e principalmente de documentários sobre arte e artistas. Nesse campo, testou vários modelos, como os de Raul: o Princípio, o Fim e o Meio, Moacir Arte Bruta, Brincante e Iran. Dirigiu, ainda, Janela da Alma e Um Filme de Cinema.
Filme: Iran (2017)
Enquanto fazia a direção de fotografia do filme Redemoinho, de José Luiz Villamarim, Walter Carvalho acompanhou minuciosamente o trabalho do ator Irandhir Santos na construção do seu personagem. Observação silenciosa de um processo de imantação quase xamânico, onde o ator é tomado como forma escultural.
Nos baús da história
Belisario Franca é um documentarista notoriamente empenhado na arqueologia da História brasileira. Seus filmes desenterram verdades duras e ajudam a compreender o país em que vivemos. Valorizam a pesquisa e a articulação de informações encontradas em várias fontes.
Belisario Franca
Cineasta e sócio-fundador da renomada produtora Giros Filmes, tem um vasto currículo de trabalhos voltados para a cultura e a história brasileiras. Menino 23 foi selecionado para a shortlist do Oscar e abriu a Trilogia do Silenciamento, que inclui Soldados do Araguaia e o inédito Nazinha, Olhai por Nós. Dirigiu, ainda, O Paradoxo da Democracia, Amazônia Eterna e diversas séries documentais para a TV.
Filme: Menino 23: Infâncias Perdidas no Brasil (2016)
O "menino 23", hoje um senhor idoso, foi uma das crianças recrutadas para trabalho escravo na fazenda de uma família nobre paulista nos anos 1930/40. A partir da pesquisa de um historiador, o filme desenterra uma terrível história de racismo, eugenia e segregação, com inspiração nazista.
O filme-ensaio
Uma das mais nobres facetas do cinema do real, o filme-ensaio explora seus temas de maneira livre, ampla e multidisciplinar. Envolve questionamentos e visão crítica a partir da subjetividade do realizador. Joel Pizzini está entre os mais requintados adeptos dessa modalidade. Em 500 Almas, a etnografia ganha verniz poético.
Joel Pizzini
Talentoso adepto do documentário ensaístico e poético, trabalha na intercessão entre vários tipos de material e várias linhas narrativas. Seu interesse pelos diálogos interculturais o levou a dirigir os curtas Caramujo-Flor, Enigma de um Dia, Glauces e Helena Zero, bem como os longas 500 Almas, Anabazys, Olho Nu, Mr. Sganzerla - Os Signos da Luz e Rio da Dúvida, entre outros.
Filme: 500 Almas (2004)
Muitos anos depois de ter sido considerada extinta, a tribo dispersa dos índios guatós foi redescoberta no Pantanal matogrossense. O filme documenta o delicado processo de reconstrução da sua memória e identidade, feito no cruzamento das vozes dos próprios membros da comunidade e de antropólogos, além de encenações e referências culturais diversas.
Estratégias narrativas
Uma das riquezas do documentário são os muitos caminhos tomados pelos realizadores para chegarem a seus objetivos. Gabriel Mascaro tem sido um desbravador dessas estratégias narrativas. Em Doméstica, ele repassou a autoria a jovens não cineastas para registrarem sua relação com as empregadas de suas casas. É o típico documentário de dispositivo: no lugar do roteiro, uma decisão de método. O diretor se coloca à mercê de um critério previamente estabelecido.
Gabriel Mascaro
Expoente da nova geração de cineastas pernambucanos, realizou documentários profundamente inquisidores, como KFZ-1348, Um Lugar ao Sol e Doméstica. Enveredando pela ficção, fez o híbrido Avenida Brasília Formosa e mais tarde os consagrados Boi Neon e Divino Amor. Tem trabalhos também na área de instalações audiovisuais.
Filme: Doméstica (2012)
Durante uma semana, sete jovens se tornaram cineastas amadores e filmaram o cotidiano de suas empregadas domésticas. O material foi entregue ao diretor Gabriel Mascaro, que compilou os momentos mais marcantes neste documentário.
Por um cinema híbrido
Outra marca importante do cinema brasileiro contemporâneo é a mescla de registros documentais e ficcionais, o embaralhamento de fronteiras entre captação do real e dramatização. Em Orestes, testemunhamos a interação de depoimentos, psicodrama e teatralização para dar conta de um drama histórico nacional à luz da tragédia grega.
Rodrigo Siqueira
Formado no telejornalismo, estreou no documentário com Aqui Favela – O Rap Representa e projetou-se com o inusitado Terra Deu, Terra Come, premiado no festival É Tudo Verdade. Orestes deu seguimento a uma carreira marcada pela inquietação no tratamento do real e suas aparências.
Filme: Orestes (2015)
Crime político, justiça, vingança e perdão são debatidos a propósito da figura do Cabo Anselmo a partir de um psicodrama com a participação de sua filha, um ator e uma defensora de vítimas de violência. Em paralelo, um júri ficcional refaz o julgamento do personagem Orestes, de Ésquilo, ensejando uma discussão sobre a Lei da Anistia.
Quando o real vira ficção
A operação de transformar imagens documentais em matéria de ficção envolve ousadia e inteligência, virtudes que não faltam aos diretores desse filme. Marcelo Gomes e Karim Aïnouz ressignificaram cenas colhidas para um documentário no Nordeste adicionando-lhes uma narração de história romântica.
Marcelo Gomes
Outro realizador que trafega sem atritos entre o documentário e a ficção. Sua parceria com Karim Aïnouz em Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo é exemplar desse trânsito. Depois do sucesso de Cinema, Aspirinas e Urubus, dirigiu Joaquim (sobre Tiradentes), O Homem das Multidões e o documentário Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar.
Filme: Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo (2009)
Jovem geólogo atravessa o sertão nordestino numa pesquisa de campo. Sem aparecer na tela, ele faz uma espécie de vídeodiário da sua separação. Um road movie sentimental construído com materiais filmados para o documentário Sertão de Acrílico Azul Piscina, de Karim Aïnouz, sobre os quais foi acrescentada a voz off de Irandhir Santos.
A periferia no centro
A democratização digital e as políticas de inclusão cultural fizeram com que as vozes da periferia ganhassem centralidade no cinema brasileiro contemporâneo. Emílio Domingos é um notório conhecedor desse processo e mantém uma instigante relação de troca com os personagens de seus filmes.
Emílio Domingos
Cineasta e cientista social, realiza trabalhos de Antropologia Visual com foco em cultura urbana, através de pesquisas sobre funk, samba e hip hop. Esses temas vêm sendo desenvolvidos nos documentários L.A.P.A., A Batalha do Passinho, Deixa na Régua e Favela é Moda, além de uma série de curtas e videoclipes. Atua também como pesquisador em cinema.
Filme: Favela é Moda (2019)
O documentário acompanha o cotidiano e o desenvolvimento de jovens modelos de uma agência localizada na favela do Jacarezinho, Zona Norte do Rio de Janeiro. A partir do conceito Moda Resistência, eles questionam o padrão estético no mercado da moda no Brasil.